Atravesso vez ou outra o centro da velha Philipéia. Quase sempre bem rápido e em demanda a endereços mais atrativos do ponto de vista etílico ou gastronômico. Já não sou mais muito de me demorar por lá a flanar, buscar almoço ou adquirir quinquilharias e impressos diversos, como era usual em outros tempos.
Pontos onde aquele adolescente adquiria gibis, revistinhas de cifras, livros, revistas adultas e filmes, evaporaram. A era dos impressos, afinal de contas, acabou-se em definitivo. E eu, incontinente, saboreei as últimas notas dessa era, logicamente, flanando pelas ruas do centro. Tempos passados. Já não há Reginaldo, sob um pano de fundo de jornais, em sua banca no Ponto de Cem Réis.
Minhas investidas hoje no local quase sempre são objetivas. Geralmente em busca de algum serviço - sapateiros, por exemplo, cuja concentração se dá nos shoppings populares - ou algum apetrecho eletrônico que não encontro, pelo mesmo preço, em outras praças. Passo ligeiro, apressado, vigilante. Abro exceções quando é carnaval e as Calungas animam a quinta-feira das flores e o Cafuçú abre os estandartes do deboche.
Confesso, porém, que nas incursões diurnas sinto falta do burburinho de outrora, quando toda necessidade da população parecia só ser pleno de satisfação quando recorria ao comércio central. Sou dos tempos áureos da ocupação da Praça Pedro Américo pelos camelôs, e da Aristides Lobo, pelos fotógrafos lambe-lambe.
O downtown pessoense anda experimentando um estado de depressão crescente. Falta seiva em suas artérias. Seiva de rua é gente circulando, barulho de trânsito e pregoeiros de mercadorias variadas. O trânsito, geralmente beirando o caótico, completa a zorra.
Não quer dizer que esteja desértico, caro leitor herói, nada disso. Falta a pujança (essa palavra foi meu amigo Alfredo Ribeiro Jr. que resgatou) dos tempos idos. O comércio de itens indispensáveis anda migrando daquelas bandas. Por outro lado, verifica-se uma “chinalização” em massa dos espaços e dos tipo de produto que se negocia.
Falta ânimo e vivacidade nas ações cotidianas do centro. Parece um acordar preguiçoso e uma reserva de banzo que vai tomando todas as horas do dia. O casario antigo, naturalmente sisudo, mostra-se cada vez mais vetusto, de cara fechada, casmurro, rabugento, resmungão, porém aceitando sua lenta decadência.. A pujança característica de tempos mais risonhos e mais rentáveis foi substituída pela espera modorrenta dos vendedores à porta das lojas.
Dos tempos de criança de periferia, trago a “memória” a era glamourosa do centro cinematográfico. Para lá acorriam as figurinhas carimbadas do “grand monde” suburbano, nas noites de domingo. Era quase um baile de gala real. Sugestivamente, até o piso ou tapete do cinema era vermelho. Adolescente vim conhecer a decadência dos cinemas de rua. Filmes de Faroeste no Rex, Kung Fu no Municipal, Porno no Plaza. Confesso que, dada a empáfia dos antigos frequentadores empolados, até curti a nova fase. Doeu realmente foi vê-los a perder sua função e utilidade.
A respeito disso (quem ainda não viu, veja!!!!), o documentário “Retratos Fantasmas” (2023), filme do recifense Kleber Mendonça Filho, traz um roteiro lírico da região central da “Veneza brasileira” durante as quadras do século XX. Narra a seu modo a evolução do local, a chegada das novidades arquitetônicas, o período áureo das casas de exibição de filmes, o comércio de curiosidades que se estabeleceu em torno - e devido - às produções da 7ª arte.
O diretor constata, melancolicamente, que as zonas centrais das cidades passam por processo de esvaziamento e desvalorização. O abandono deixando seus rastro indelével pelas ruas um dia ocupadas e movimentadas. O filme, na realidade, faz uma constatação amarga e serve como um grito, uma denúncia, um pedido de ajuda para um enfermo que, apesar de tudo, ainda suspira.
A situação não é um privilégio da capital pernambucana. É similar ao que acontece em outras capitais, como a velha Frederika de Nossa Senhora das Neves. Esta ainda anda a puxar fôlego por entre a fumaça de veículos fujões, dos cachimbos improvisados para o consumo de crack e, ultimamente, dos carros de churrasquinhos que, a luz do meio dia, atraem clientes para o menu fast food da cidade pedinte de atenção. Se a downtown há de decair até ao rés do chão, não creio. Quero crer que, assim como a vida se movimenta por ciclos, o velho centro, ora dessas, acaba esbarrando em novas e vigorosas atividades para ressignificar o seu papel.
*Jornalista, cronista e poeta.
Mín. 25° Máx. 29°