Lá pelos primórdios do hoje já ultrapassado e-mail, escrevi uma carta para uma amiga. Produzi, de próprio punho, um lauto original, o copiei revisando e eliminando potenciais deslizes gramaticais e mal-entendido em geral, concluí o mal escrito, envelopei e despachei via ECT. Penso que por essa época também já andava circulando como novidade entre os descolados de então, um proto emissor de mensagens que já fazia, então, a cabeça da galera descolada. Um pager, bipe ou seja lá que nome tivesse. Engenho bem anterior a qualquer coisa que beirasse o conceito de rede social.
Ao comentar meu feito com outra amiga mais presencial -do tempo, também em que os amigos eram presenciais - ela desferiu um comentário de incredulidade: “Nêgo, quem mais escreve carta hoje em dia?”, disse, entre risos sobre minha iniciativa. Calei. Não havia argumentos ao alcance da língua. Experimentava eu, ali, in loco, o coração da decadência das missivas. Era definitivamente o fim de uma era e eu, um jovem dinossauro que ainda escrevia cartas.
Mas não era disso que queria falar. Tomei o caso da carta como introdução para contar de uma crônica que acabei de ler que faz referência a um tempo de intercomunicação mais reflexiva - o tempo da troca de missivas -, falar de saudade e da insanidade do progresso. O texto do cronista Francisco Gil Messias, intitulado “O economista, o poeta e os cajueiros”, (disponível em https://www.carlosromero.com.
Cabe ressaltar aqui, assim como o faz o cronista, a riqueza histórica que se encerra na troca de missivas de outrora. Cada carta é um documento vivo. De certa forma um retrato de uma época, revelada desde a forma de expressão dos autores à linguagem empregada, mentalidades e cenário social de uma época. Uma carta chama especial atenção do cronista, pelo inusitado da interlocução entre o economista e o poeta Thiago de Melo. Especula o cronista sobre que assuntos conversariam tão díspares personagens.
Sendo Thiago um poeta militante das causas sociais, quero crer que a tal correspondência foi matizada por esse viés. O que chama atenção do cronista entretanto é a passagem em que o poeta-missivista se refere a um detalhe atinente a capital paraibana: o “perfume dos cajueiros públicos, que vão de João Pessoa a Cabedelo”. Confesso que a mim também atrairia, pois hoje ao fazer diariamente o percurso entre as duas cidades, ainda procuro em algum descampado fragrar um sobrevivente cajueiro. Triste, claro, como na canção de um outro contemporâneo, o megaartista Rosildo Oliveira.
A carta data de 3 de maio de 1974, portanto trazia reminiscências de um tempo pregresso. Por essa quadra contava eu com 8 anos vividos, portanto não peguei a fase a que o poeta alude e pouco transitava praqueles lados, mas do pouco que vi, o cajueiro sempre esteve presente, assim como as mangabeiras fazem parte da minha memória afetiva quando se fala do litoral sul, dos Mituacu, Paripe, Gurugi e Ipiranga.
Nos diz o cronista “Meus contemporâneos sabem: toda a nossa orla marítima, até Cabedelo, era um imenso cajueiral nativo até os anos 1960. Pouquíssimas casas de veraneio quebravam a uniformidade da paisagem colorida pelos cajus vermelhos e amarelos, tantos, que não havia quem os colhesse – e eles então caíam dadivosamente no arenoso chão e alimentavam fartamente os passarinhos de todos os cantos. Bucolismo? Sim. Em plena urbe.”
E continua o cronista, narrando entardeceres de verão, quando saia com amigos, “com cestas e varas na mão, exatamente para colher esses cajus que pareciam eternos e que infelizmente sumiram por força da crescente urbanização de nosso litoral, a partir dos anos 1970”.
Em 1974 estava eu com 8 anos de idade, contemporâneo portanto do fenômeno chamado de urbanização que, numa palavra, quer dizer expulsão de quem não parece “contribuir” para economia de seu hábitat natural. Visitei um dia um tio que residia numa região que, salvo engano, era Tambaú. Casa simplesinha, com areal branco e frutíferas. Essa imagem volta sempre como um retrato que, forçosamente, vai esmaecendo à medida que os anos passam.
Acho que a carta direcionada a minha amiga foi a última que escrevi. Adaptei-me ao e-mail que, aos poucos, vai caindo em desuso, pelo simples pecado de facultar ao redator “missivas” mais longas, com aprofundamento e fortuna de argumentação. Adapto-me, aos trancos e barrancos, à urbanização. Creio que nada a sucederá, tende a se acirrar derrubando cajueiros para levar mais “gente” pras proximidades do mar, enquanto periferiza outros tantos.
Ando perdendo de vista a flora generosa e o odor embriagante proporcionado pelas frutíferas desde a floração. Navego, enfim, em meio ao concreto que não dá frutos, apenas atrai gente seduzida pela beleza, pela promessa de conforto e facilidades. Chegamos enfim, a estação do extremo prazer absoluto e imediato, não há tempo para maturar o caju. É preciso ter o caranguejo na mesa sem saber que o bicho nasceu no mangue e que, para tê-lo, é preciso manter seu habitat natural e respeitar seus ciclos.
Somos evolutivos e é aí onde, talvez, a poesia dialogue com a economia. A ideia de progresso constante institui a substituição permanente de modelos e formas de vida, assim como os cajueiros, mangabeiras e caranguejos. Assim como as cartas.
por Edson de França
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